quinta-feira, 28 de abril de 2011

"Moço, não se meta

Com uma tal de Nara Leão

Que ela anda armada

De uma flor e uma canção"

Ferreira Gullar

o afogado

"— mas o que chamas de paz se pressinto em ti essa coisa mansa que se faz nos outros e em cada momento que te olho inúmeras coisas escuras escorrem dentro de mim pois se a paz não é uma coisa escura pois senão não continuarei não te farei nenhuma pergunta embora precisasse não para te definir ou para te compreender não preciso saber de onde vens assim como para me definires ou me compreenderes não precisas de nenhum dado concreto mas eu não te defino nem te compreendo apenas sei que chegaste e que esta tua chegada modificará em mim todas as coisas que se tornaram suaves todas as cordialidades ou amenida des que construí nesse tempo de absoluta sede ansiava por ti como quem anseia pela salvação ou pela perdição porque qualquer coisa poderia me salvar desta imobilidade que me devasta por dentro te direi apenas para sobreviver mas já não quero sobreviver já não quero apenas ir adiante é preciso que qualquer coisa abata esta letargia porque já não admiro precariedades por que não sei o que digo nem o que sinto mas persistirei no que pressinto ainda que tudo isso seja um lento processo de morte um enveredar em direção ao mais terrível vejo em ti o meu roteiro de agonia além disso nada sei mas não fujo foram muito poucas as coisas que vivi percebo que não cheguei a existir exatamente mas não sou forte apenas construí de minhas fraquezas essa coisa que talvez chamasses força há muito tempo eu permanecia esquecido de mim mesmo foi preciso que chegasses para eu perceber que somente destruindo se pode construir agora eu quero a destruição que me propões mas não propões nada deixas que eu enverede sozinho é assim sei que não me deixarás sozinho sei que te recusas a te definires em palavras não por que eu me atemorizasse mas por que as palavras não te dizem te mos muito pouco tempo nesse pouco tempo é preciso que todos percebam em ti o que nunca viram e somente no último momento possam ver a tua face essa face terrível que todos suspeitam terrível mas eu reivindico a posse desse terrível porque me sei capaz de suportá-lo não falta muito tempo agradeço por me teres dado a consciência da minha inutilidade mas eu de nada sei nada conheço do que falo mesmo assim estou pronto embora sem compreender inteiramente sim semearemos a fome e a discórdia semearemos o que eles não seriam capazes de viver se não chegasses não me esquivarei vejo a tua mão estendida em direção a mim e estendo a minha própria mão e minha mão e tua mão se tocam e a minha espera e a tua conduz sim preparo-me para o grande mergulho no desconhecido:"

C.F.A.

"... ouço Adriana Calcanhoto no walkman e me dá uma saudade irracional de você."

saudade de VOCÊS.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Ninguém tem que buscar a si mesmo. A gente só tem que aprender a não se rejeitar. Se dar colo, aprender a receber afeto, querer afeto e saber que não virá aquela hora. A gente tá ali dentro o tempo todo, mas é preciso se olhar com olhos amorosos. Porque fazemos o que podemos diante do que sentimos. E há sempre uma forma de ser e estar além. Quando dói nada disso faz sentido. Mas um dia faz. E funciona.

Marla de Queiroz

(Ontem li algo de Marla e gostei. Fui dar uma olhada no que ela já escreveu e acabei encontrando coisas ótimas. Este trecho diz muito do ando pensando. Aliás, acho que a maioria de nós. Ou não. whatever.)

Extensão

Extensão
Rio de Janeiro

Eu busquei encontrar na extensão um caminho
Um caminho qualquer para qualquer lugar.
Eu segui ao sabor de todos os ventos
Mas somente a extensão.

Chorei. Prostrado na terra eu olhei para o céu
E pedi ao Senhor o caminho da fé.
Noites e noites foram-se em silêncio
E somente a extensão.

Quis morrer. Talvez a terra fosse o único caminho
E à terra me abracei esperando o meu fim
Porém tudo era terra e eu não quis mais a terra
Que era a grande extensão.

Quis viver. E em mim mesmo eu busquei o caminho
Na ansiedade de uma última esperança
Eu olhei - e volvi à extensão desesperado
Era tudo extensão.


Vinícius de Morais


Lembrei tanto desse poema esses dias....

quinta-feira, 21 de abril de 2011

poema da mamãe.

Gente, gostei demais desse poema da mamãe e achei ótima a idéia de compartilhar com vocês por aqui. Nessa quinta-feira-feriado-meio-chuvosa-que-tem-samba-mais-tarde-em-thaynã nada melhor do que começar assim, né? Sem esquecer de que estamos todos muito felizes porque Rodolfo está aqui em Campina pra gente aproveitar! Um xero e até mais tarde!


Loucura

Meu corpo, palco do desejo

Do amor que quero e vejo

É uma loucura tão louca

Que dá secura na boca

Um amor vivo feito carmim

Vindo ao encontro de mim

E me invade a mente

E me deixa demente

Devaneio urgente

Doente, doente...

Flor despetalada...

Coisas que não existem...

Ai de mim, se em mim não fossem.



Adília Uchôa.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

vida longa ao rei.

hoje roberto carlos completa 70 anos de vida e, para comemorar, eis um vídeo DAQUELES. :~

domingo, 17 de abril de 2011

nara.


p.s.: uma vez me disseram que elis regina chamava nara leão de "a muda da mpb", mas eu me recuso a acreditar nessa maldade. :~

quarta-feira, 13 de abril de 2011

O Dia Deu em Chuvoso

O Dia Deu em Chuvoso

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.

Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.

Álvaro de Campos, in "Poemas"

terça-feira, 12 de abril de 2011

Quando os clientes saíram, Eugênio escancarou a janela, sorveu demoradamente o ar fresco da tarde. De certo modo se sentia alegre. Começava a tomar a vida pelos ombros e tentava beijá-la na face, como lhe aconselhava Olívia. Era um beijo de sacrifício que ele dava ainda com alguma repugnância, num desfalecimento de medo, violentando a sua natureza mais íntima. Mas havia nesse beijo um estranho elemento de fascínio. E ele sabia - se sabia! - que um dia, não muito remoto, ele ainda beijaria com amor essa mesma vida incoerente, sórdida, brutal e apesar disso, ou talvez por isso mesmo, bela.

Olhai os Lírios do Campo, Érico Veríssimo, pág. 188, 2005.

Tenho ido dormir quase sempre meio triste, talvez o cansaço de mais um dia igual, mas acordo com uma fé que me faz saber do mesmo que Eugênio sabia e assim consigo continuar. Acreditar no agora e no futuro sem olhar pra traz, escolher um caminho e seguir tendo fé, sabendo que é a melhor estrada que você pode trilhar. Um exercício sem fim de vontade. Do mesmo livro: "A vida começa todos os dias" (pág. 179)

Bons sonhos, meus amores.

Comer, Rezar e Amar.

"Por favor, levante do chão. Por favor, você pode vir pra cá? E se admitirmos que nossa relação é ruim mas continuarmos juntos? Aceitamos que brigamos muito, quase não transamos mais, mas não vivemos um sem o outro. Assim, podemos passar a vida juntos, infelizes mas felizes por não estarmos separados."


"Querido David, nós não nos comunicamos há algum tempo, o que me deu tempo pra pensar. Lembra quando você falou que devíamos ser infelizes juntos para sermos felizes? Considere prova do quanto te amo eu ter passado tanto tempo tentando fazer a idéia de dar certo. Mas, outro dia, um amigo me levou a um lugar incrível: o Augusteum. Otaviano Augusto o construiu para abrigar seus restos mortais. Vieram os bárbaros e foi demolido, com o resto. Como Augusto o primeiro grande imperador de Roma imaginaria a queda de Roma e de todo o mundo como ele o conhecia? É um dos locais mais sossegados e solitários de Roma. A cidade cresceu ao seu redor ao longo dos séculos. Como uma ferida, um coração partido ao qual você se apega, pois a dor é boa. Todos queremos que as coisas permaneçam iguais, David. Vivemos infelizes com medo que uma mudança estrague tudo. Aí, eu olhei esse lugar, o caos que ele suportou, o modo como foi adaptado, queimado, pilhado e reconstruído, e me tranquilizei. Talvez minha vida não tenha sido tão caótica. O mundo que é. A armadilha é nos apegarmos às coisas. A ruína é uma dádiva. A ruína é o caminho que leva à transformação. Até nesta cidade eterna, o Augusteum me mostrou que devemos estar preparados para as intermináveis ondas de transformação. Nós dois merecemos mais do que ficarmos juntos por medo de sermos destruídos não ficando.”


Comer, Rezar e Amar.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Oração

Senhor, obrigado pelo dia que passou como também pelo que acaba de começar. Abençoe esse novo dia com toda tua beleza pra que a gente possa ser mais feliz e menos mesquinho. Obrigado porque eu tenho casa, comida, roupa lavada e amor, amor de mãe, amor de pai, amor de irmão, Teu amor, meu amor. Apesar de tudo ainda vale a pena por causa do amor, Tu és quem mais sabe disso. Abençoe grandemente a minha mãe para que ela possa me brindar com sua presença na minha vida ainda durante muitos, muitos, muitos anos... acho q eu não saberia viver sem ela que de longe é meu norte pra tudo. Abençoe porque ela não sabe parar, não sabe como parar essa vida dela tão corrida, estressante, estressada, cansada, não, ela não sabe como parar de amar e por isso continua, vai, faz e acontece. Dá força pra ela. Dá força pra mim também. Abençoe meu pai, com toda sua rudeza eu sei que ele me ama e é bem melhor que muita gente que eu já tive o desprazer de conhecer. Abençoe meus irmãos, cada um deles com toda essa coisa de cada um deles que eu, todos aqui temos de saber lidar, conviver, não é tarefa fácil. Todos temos problemas, todos temos opiniões, gênios, vontades nessa casa que ainda só tem 5 cômodos, imagine. Abençoe os avós, tios, primos, porque não? Abençoe os meus amigos, esses que tentam me entender, me fazem rir e me fazem chorar, me fazem de filho, me fazem de pai, de mãe, de irmão, me fazem do que precisam em todas as horas boas e ruins, abençoe-os muito! Abençoe até aqueles que me esqueceram e aqueles a quem esqueci, se tivemos bons sentimentos uns pelos outros já valeu nem que tenha durado um só minuto. Por fim, me abençoe, me faça acreditar, ter fé que essas coisas todas que me fazem pensar muita besteira, mas muita mesmo, passem, ter fé que aquele meu sonho de uma felicidade modesta vai se realizar, não quero pensar um dia que meus sonhos foram apenas pobres enganos. Pra tudo isso me abençoe com coragem de lutar, perseguir, procurar, quem sabe um dia eu acabe achando mesmo. Por tudo isso me abençoe com tua luz, porque às vezes eu me sinto triste, escuro, e eu preciso continuar seguindo sem medo. Por favor, visite a casa, a cama de cada um desses que eu amo e vele o sono de todos, sim? Todos precisam de uma noite de paz. Todos. A gente nunca sabe se esses sentimentos todos vão voltar na manhã seguinte, talvez nem tenham ido embora, mas de um jeito ou de outro vai ser preciso acordar e, na maioria das vezes, não é só da força física que precisamos. Força, sim? Também. Pra todos nós. Amém.


Choro necessário


Eu não tive tempo de chorar por esse amor, mas sei que isso é necessário. Uma vez, a muito tempo, ouvi a máxima de que “tempo é uma questão de prioridade”, tomei essa frase como uma das verdades que carrego comigo durante toda a vida e certamente agora é mais oportunidade para usá-la. Qualquer pessoa no meu lugar também não daria prioridade ou, pelo menos, preferiria dizer que não teve tempo de chorar por algo que em outros tempos trouxera tanta alegria.

Mas isso é necessário. É imprescindível botar o choro para fora para ele não ficar se derramando por dentro. Fora talvez ele cause constrangimento ou vergonha, mas dentro ele causa dor, dor patológica, antológica, epistemológica.

Chorar, nesse caso, é a cura, a libertação. É sentar frente a frente com a dor e dizê-la: Estou aqui e você pode doer o quanto aguentar, eu não tenho medo. Mais sofreria se continuasse na covardia de abrigá-la em meu coração sem ao menos ter a coragem de olhar para seus olhos.

Parece confusão juntar num mesmo espaço amor, choro, dor sem que esse tripé represente um fim. Mas não estou falando em fim de amor que tem como consequência choro e dor. Estou falando de mudança, de um amor que mudou e que não encontra mais forças na presença, ao passo que a distância se mostra o ingrediente fundamental para sua preservação.

E mudança não representa, de certa forma, um fim? Sim. Toda mudança é um novo começo para um novo fim, no ciclo eterno de Sísifo. Mas o fim de algo que não acabou. E como é mais triste chorar pelo fim de algo que não foi sepultado. Mas é necessário.

notícia do dia.

eu e monique descobrimos hoje que vamos ser tios (YEEY!!). ana valéria está grávida e já estamos todos trabalhados na ansiedade. então, pra quebrar um pouco esse clima de impaciência e aprender a curtir a delícia da espera, eu me lembrei dessa canção:

volta.


"a sentir tantas coisas
que a gente não pode explicar
quando ama."

segunda-feira, 4 de abril de 2011

dividir.

"Há coisa mais comovente […] do que essa fragilidade, essa pungência, essa graça radiosa e desesperada? Isso também vale para meus amigos: gosto de que me digam onde lhes dói, em vez de se esconderem, como quase toda gente, atrás de uma satisfação de encomenda. O que as pessoas dizem, na maioria das vezes, só serve para protegê-las: racionalizações, justificativas, negações… Para quê? Melhor seria o silêncio. A palavra só me interessa quando é o contrário de uma proteção: um risco, uma abertura, uma confissão, uma confidência… Gosto de que falem como quem se despe, não para se mostrar, como crêem os exibicionistas, mas para parar de se esconder…"

COMTE-SPONVILLE, André. “O amor a solidão”. 2. ed. São Paulo, Martins Fontes, 2006, p. 59-60

Canção de Homens e Mulheres Lamentáveis

Antônio Maria

Esta noite... esta chuva... estas reticências. Sei lá.

Quem seria capaz de abrir o peito e mostrar a ferida? De dizer o nome? De lembrar, sequer lembrar, o rosto?

Quem seria capaz de contar a história? De chamar o maior amigo, ou melhor, o inimigo, e dizer:

— Estou me sentindo assim, assim, assim...

A humanidade está necessitando, urgentemente, de afeto e milagre. Mas não sabe onde estão as mãos, nem os deuses. E, quando souber, vai achar que as mãos e os deuses são de mentira. Os olhos de todos estarão cheios de medo, os olhos das jovens raparigas, os olhos, os braços, o ventre e as pernas das jovens raparigas, receosos de pagar com os quefazeres do sexo.

Nesta noite, com esta chuva, as jovens raparigas não são importantes. Apenas uma tem importância. Mas quem seria de todo livre e descuidado, a ponto de dizer o seu nome? De pensar o seu nome? Você diria em público o nome da Amada? E suportaria ouvi-lo? Não, não; o nome dela, em sua boca ou na dos outros, é tão proibido como sua nudez (dela). Não há diferença.

E por que você não se transforma no homem banal, que se encharca de álcool, para apregoar a desdita? Seria mais fácil. Talvez alguém lhe chamasse de porco e você revidasse com um soco no rosto, um só rosto, de todo o Gênero Humano. Viria a polícia, que simplifica tudo, generalizando. E tudo se transformaria em notícia: "Preso o alcoólatra, quando injuriava e agredia a Família Brasileira, na pessoa de um sócio do Country".

Há poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das escolhas seria desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas, igualmente pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte, mesmo em combate, é burlesca.

Uma pergunta, que não tem nada a ver com o corpo desta canção. Quem saberia discriminar o ódio do amor? Ninguém. Os psicologistas e analistas têm perdido um tempo enorme.

Ontem à noite, voltando para casa, senti-me espectador de mim mesmo. E confesso que, pela primeira vez, não achei a menor graça. Saíra, pela primeira vez, de óculos e o porteiro do edifício me recebeu com esta agradável pergunta:

— Que é que houve? O senhor está mais velho?

Tirei os óculos e, fitando-o, esperei as desculpas. Mas o homem continuou:

— O que é que houve? De ontem para cá, o senhor envelheceu.

Tinha pensado que, sem os óculos...

Não estou escrevendo para ninguém gostar ou, ao menos, entender. Estou escrevendo, simplesmente, e isto me supre: contrabalança, quando nada. Esta noite, esta chuva — e poderia escrever as coisas mais alegres, esta noite. Neruda, coitado, as mais tristes.

Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco, para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida.

(9/10/1964)


Texto extraído do livro "Com Vocês Antônio Maria", Editora Paz e Terra - São Paulo, 1994, pág. 127.

Amor total



Soneto do amor total – Vinicius de Moraes por Maria Bethânia.

O amor acaba - Paulo Mendes Campos

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.